ÁGUA DE BEBER CAMARÁ: PERFORMANCE, CRIATIVIDADE E IMPROVISAÇÃO CULTURAL NA CAPOEIRA

ÁGUA DE BEBER CAMARÁ: performance, criatividade e improvisação cultural na capoeira

Patrícia Campos Luce

Texto publicado no site do VI Colóquio Internacional de Etnocenologia (ocorrido no período de 2 a 5 de agosto de 2009 na Escola de belas Artes e Artes Cênicas da UFMG – Belo Horizonte / MG) - http://www.etnocenologia.org/vicoloquio/

Desenho: Carybé

Palavras-chave: capoeira; drama; performance; ritual; teatro; criatividade; improvisação.


Entrelaçada à história do Brasil e, particularmente, à história dos afro-descendentes no país, a capoeira nasce e se desenvolve como um híbrido de elementos africanos, portugueses e indígenas. A partir de sua mundialização absorve aspectos de outras culturas também. Esta seria uma das suas características que poderia identificá-la como performance:

A performance nasce e se desenvolve como um híbrido, ou pela mistura de gêneros, de suportes, de conteúdos, ou porque, como todo processo de hibridação, implica contaminação (contágio) entre todas as partes envolvidas e a conseqüente modificação dos agentes participantes, não se trata, obviamente, de “influências” unidirecionais: as artes performáticas interferem na política e a política na arte. (RAVETTI, 2002, p. 57).

Mas o que significa compreender a capoeira como performance? Como os estudos antropológicos das formas expressivas ajudam a compreender sua complexidade? E ainda, de que maneira a matriz afro-descendente contribuiria para delinear as peculiaridades de sua performance?

Conforme lembra Silva (2005, p. 36), “o enfoque dos ‘gêneros de performances’ é uma das tendências recentes que parece ganhar força entre as perspectivas antropológicas que têm priorizado os eventos rituais e o teatro como suporte para análise da realidade social”. O autor acrescenta que “uma das referências pioneiras nesse campo é o antropólogo Victor Turner que dedicou esforços no empreendimento de fundação da vertente antropológica denominada ‘antropologia da performance’ (Turner, 1987)”. Sua investigação foi centrada nos rituais do povos Ndembu da África Central. Turner desenvolveu um modelo de estudo que interpretou ‘os ritos de passagens’ através de uma analogia com o teatro grego, o que justifica os motivos pelos quais definiu os rituais Ndembu nos termos de “drama social”. No processo da vida social os dramas surgem marcando uma relação dialética entre “estrutura” (realidade cotidiana) e “antiestrutura” (momentos extraordinários, definidos pelos ‘dramas sociais’). Estes configuram uma situação de liminaridade:

Os atributos da liminaridade, ou de personae (pessoas liminares) são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares [...] exprimem-se por uma rica variedade de símbolos. [...]. As entidades liminares [...] não possuem “status”. (TURNER, 1976, p. 117-118).

O que há de interessante com relação aos fenômenos liminares, conforme elucidou Turner (1976) é que eles destacam o sentimento da communitas. Essencialmente, a ‘communitas’ seria uma relação entre indivíduos concretos, históricos, idiossincráticos, que não estariam segmentados em função e posições sociais, mas sim se defrontando uns com os outros. Portanto, a liminaridade impõe-se como elemento constitutivo dos ‘dramas sociais’, sentimento de communitas nas figuras marginais e anônimas, do ponto de vista estrutural”. (SILVA, 2005, p. 39).
Ao pensar os fenômenos culturais nas ‘sociedades complexas’ ocidentais, Turner, a partir da noção de liminaridade, desenvolveu o conceito de ‘liminóide’. Desse modo, deslocou a ênfase de uma teoria dos dramas sociais (voltada para exame das sociedades tradicionais), para a ‘teoria da performance’, mais precisamente a da ‘performance cultural’. Assim, Turner (1987, p. 74) estabelece a distinção entre as ‘performances sociais’ (ritos como as peregrinações religiosas e/ou ‘dramas sociais’) e as ‘performances estéticas’, tais como os ‘dramas estético-teatrais’. Ele coloca que a antropologia da performance é uma parte essencial da antropologia da experiência (TURNER, 1982, p. 13). Como elucida Dawsey (2005, p. 164), ao discutir o processo da experiência vivida em cinco momentos, Turner define que a performance completa uma experiência (TURNER, 1982, p.13-14).

No campo das ciências sociais, Turner abriu-se ao diálogo com teóricos que também empregam a noção de performance – principalmente o sociólogo Erving Goffman e o diretor teatral e antropólogo Richard Schechner. Para o primeiro, o mundo social serial um palco onde os indivíduos humanos se destacam como atores que desempenham cotidianamente papéis pré-estabelecidos socialmente. Richard Schechner empenhou-se em demonstrar que, de fato, não existe distinção entre ‘rito’ e ‘teatro’. Para ele, estas duas categorias representam eventos de uma mesma natureza: são performances. Enfatizando a relação entre performer e audiência, Schechner desenvolve as noções de “eficácia” (ritos) e “entretenimento” (teatro). Para ele, a noção de performance compreende um movimento continuum que vai do ‘rito’ ao ‘teatro’ e vice-versa (Schechner, 1988, p. 120). O autor classifica os processos de transportation e transformation que ocorrem neste movimento continuum. O primeiro termo sugere que participar de uma performance (sendo performer ou audiência) implica deslocar-se para ‘um mundo recriado’ momentaneamente, assumindo outro papel. Esta experiência temporária pode ser transformada em um status permanente, tornando-se, então, trasnformation propiciando o desenvolvimento (para o ator social na qualidade de performer ou espectador) crítico de si mesmo e da realidade social em que está inserido. O autor também destaca a noção de comportamento restaurado, demonstrando empiricamente que toda performance consiste numa atividade cultural dinâmica, reelaborada criativamente ao longo do tempo, mas que sempre se pretende como uma prática idêntica ao que se acredita ter sido no passado, tanto no presente quanto no futuro. Conforme lembra Silva,

(comportamento restaurado para o performer) traz à tona, a recordar nos gestos [...] experiências guardadas nas profundezas do ser, internalizadas através de um longo e complexo processo de socialização. [...] evoca a memória, instiga à reflexão e remete a experiências que fazem parte da trajetória de vida do sujeito. (SILVA, 2005, p. 54).

Em certo sentido esta discussão de Schechner parece convergir com as reflexões de Tim Ingold, Elizabeth Hallam e Karin Barber (2007, p. 1-51) sobre criatividade e improvisação cultural. Estes autores colocam que não existe script para a vida sócio-cultural. Assim, as pessoas são compelidas a improvisar, não porque elas operam ‘de dentro’ de um corpo de convenções estabelecidas, mas porque nenhum sistema de códigos, regras e normas pode antecipar cada circunstância possível. Improvisação e criatividade seriam intrínsecas aos processos da vida sócio-cultural. Neste sentido é que se explica a dinamicidade e a permanência ao longo do tempo da performance. Fixar e improvisar seriam categorias inseparáveis: durante a reprodução da performance, ela seria simultaneamente inscrita em cada ato que a realiza, porém nunca exatamente replicada.

Outro autor que é referência para os estudiosos da performance é Clifford Geertz. Ele elabora uma crítica ao modelo interpretativo do rito de Turner, colocando que ele o concebeu como “uma fórmula para todas estações” (GEERTZ, 2001, p.46). O interesse de Geertz (2001, p. 33-56) consiste no esforço de captar os significados das ‘ações simbólicas’ – ou performances – em determinado contexto social específico, sendo entendido que estes se inscrevem nos atos, gestos, bem como em acontecimentos aparentemente casuais. Outros autores elaboraram críticas ao modelo do rito de Turner: Michael Taussig (1993) - contrapõem-se ao caráter universal do conceito de communitas; Mariza Peirano (2006) – a concepção do que é performance é etnocêntrica, já que se refere a eventos do ‘nosso mundo’ ocidental, na concepção da antropologia da performance é preciso esclarecer se performance seria tema, teoria ou antidisciplina; Jean-Marie Pradier (2001) – a concepção de performance não pode ser etnocêntrica e monodisciplinar.

Portanto, pensar capoeira como performance significa considerá-la em uma situação de liminaridade, configurando uma antiestrutura social, podendo, portanto, proporcionar um sentimento de communitas, uma experiência em que os sujeitos podem desenvolver sua consciência crítica em relação a si mesmos e à realidade social. Exatamente por possuir características de ritual e de teatro, a capoeira é uma performance que, dependendo das circunstâncias, ocasião, lugar e envolvimento da audiência pode obter mais características de rito (eficácia) ou de teatro (entretenimento), sem contudo, deixar de possuir características de ambos. A partir da interpretação dos significados das ações performáticas dos atores sociais na capoeira, traduzidos a partir de seus elementos sensíveis (gestos, canto, ritmo, coreografias, etc.), é possível compreender nuances da realidade sócio-cultural do palco maior da sociedade brasileira. A permanência da capoeira ao longo da história se deve, em parte, à inerência cultural de seus atores de improvisar e de pretender inová-la no processo de realização de sua performance. Paradoxalmente, esta criatividade e inovação só são possíveis em função do repertório de tradição e de convenção que estes atores sociais adquirem ao longo de sua vivência.
E quanto à contribuição da matriz afro-descendente nas peculiaridades da capoeira enquanto performance?

Leda Martins (2002), ao analisar os rituais dos Congados, desenvolve as noções de ancestralidade e tempo espiralar como duas das mais importantes noções filosófico-conceituais africanas que, a meu ver, iluminam o fenômeno das ‘capoeiras’ na contemporaneidade. Ela coloca que “na performance dos ritos o corpo e voz são portais de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade”. De acordo com a autora, “nas performances da oralidade (características das culturas de ascendência banto – da qual a capoeira é herdeira – ou nagô-iorubá), o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance”. Neste sentido o corpo passa a ser mídia de si mesmo.

Jogar capoeira é performar, inscrever. É, pois, um ato de inscrição, uma grafia. O corpo passa a ser, por excelência, o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal, este corpo não apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reencenado. O fazer não elide o ato de reflexão, a memória grafa-se no corpo, que registra, transmite e modifica dinamicamente. Creio que entender a capoeira a partir desta perspectiva, possa ser uma maneira de começarmos a acessar a fonte da ‘água de beber’ que ela oferece. Pensar a capoeira como fonte alternativa e contestatória de saber, como possuidora de uma filosofia e história grafadas na memória dos movimentos, gestos, danças, dramatizações, ritmo, cantos, etc. de seus corpos performáticos.

Referências Bibliográficas

DAWSEY, John C. Victor Turner e antropologia da experiência. Cadernos de Campo. São Paulo, n. 13, 163-176, 2005.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001.
INGOLD, T; HALLAM, E. Creativity and cultural improvisation. Elizabeth Hallam and Tim Ingold Ed. New York, 2007.
MARTINS, Leda. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, G; ARBEX, M. (Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras UFMG, 2002. Cap. 1, p.69-91.
PEIRANO, Mariza. Temas ou teorias? O estatuto das noções de ritual e de performance. Campos, ano 7, n.2, p. 9-16, 2006.
PRADIER, Jean-Marie. Ethnoscenology: the flesh is spirit, new approaches to theatre studies and performance analysis. In: COLSTON SYMPOSIUM, 2001. Bristol: Max Niemeyer Verlag, Tubingen, 2001, p.61-81.
RAVETTI, G; ARBEX, M. (Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras UFMG, 2002.
SCHECHNER, Richard. Performance theory. New York: Routledge, 1988.
SILVA, Rubens Alves da. Entre “artes” e “ciências”: a noção de performance e drama no campo das ciências sociais. Horizontes Antropológicos, ano 11, n. 24, p.35-65, jul./dez. 2005.
TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1976.
________. From ritual to theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ Publications, 1982.
________. The anthorpology of performance. New York: PAJ Publications, 1987.













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